terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Resiliência e salutogênese: antídotos para a violência

Ilustração de Catarina de Matos
Resiliência e salutogênese: antídotos para a violência
Dr João Augusto Figueiró

Muito se escreve e discute sobre a violência física, abuso sexual, trabalho infantil e outros traumas perpetrados contra nossas crianças. Queremos falar de formas silenciosas e mais sutis de violência que acreditamos ser um dos maiores responsáveis pela transmissão transgeracional da violência em nossa sociedade. Formas que todos nós poderíamos desestimular, como atitude de sobrevivência financeira, ou eliminar, se fôssemos ainda mais ousados.

Há maior violência do que transmitirmos aos nossos rebentos a cultura do consumismo atual, de proporções assustadoras e sem disfarces, que destrói valores humanos e dilapida reservas naturais do planeta? Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica, de bens, de conhecimento e de cultura, que tem levado à exclusão. Adicionemos a esta receita econômica a pressão consumista jamais vista e teremos pavimentado o terreno para a explosão da violência cotidiana.


A violência leva ao retrocesso. E a violência pouco falada começa no período pré-concepção de fetos indesejados, mal-vindos ou rejeitados, decorrentes da insuficiência de um plano nacional eficaz de controle da natalidade. Permanece nas gestações mal cuidadas, tensas e desamparadas, de partos desnecessariamente cirúrgicos, resultantes principalmente de interesses pecuniários aos quais nossa sociedade fecha os olhos. Continua na primeira infância privada dos nutrientes afetivos fundamentais para o desenvolvimento saudável do ponto de vista psíquico e social. Resulta em modelos corruptos, consumistas, predatórios, competitivos e de dominação que transmitimos às novas gerações.

Sabemos há milênios que um adulto é resultado de sua própria natureza, das suas relações com a família e diferentes grupos sociais, com a cultura e com os valores, crenças, normas e práticas. "Educai as crianças e não será necessário castigar os homens", dizia Pitágoras. Platão clamava pelos melhores "nutrientes" sociais e culturais a serem transmitidos aos menores. Freud demonstrava que as interações precoces envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o ambiente. Para Karl Jasper "o homem só pode chegar a seu verdadeiro ser conduzido pelo outro". Jean Jacques Rosseau definiu o homem como um ser "feliz e bom", determinando que os preconceitos culturais e as normas da vida social produziram "sua crueldade e infortúnio". Locke assegurou: "a criança tem tendência inata a desenvolver sua personalidade original sob a influência do ambiente e da aprendizagem". Maria Montessori definiu a preparação do ambiente muito antes do ingresso da criança na escola como "chave da educação e da cultura real da pessoa desde o seu nascimento".

Esquecemos todos esses ensinamentos? Dados práticos dizem que sim. Dos 22 milhões de crianças de zero a seis anos do Brasil, mais de 14 milhões estão fora de qualquer atendimento escolar da educação infantil ou de apoio institucional. O percentual de não-atendidos chega à quase 70%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A agência Senado informa que 13 milhões de crianças dessa mesma faixa etária, pertencentes a famílias carentes, estão fora de creches. Matéria publicada na imprensa brasileira em 2007 afirma que 12% dos 55,6 milhões de crianças brasileiras menores de 14 anos como vítimas, anualmente, de alguma forma de violência doméstica. Isso corresponde a 12 crianças agredidas por minuto, mas na verdade a negligencia também ai se encontra: não temos dados oficiais confiáveis sobre a violência contra a criança no país.

Exigimos infra-estrutura para o Brasil sob o ponto de vista físico, mas poucos se debruçam sobre o que temos feito no desenvolvimento da infra-estrutura humana que irá gerir estes primeiros recursos. Se a educação acadêmica fosse suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento – e não vai aqui qualquer bravata contra investimentos nesta área, muito ao contrário – não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, os governos tirânicos e corruptos, as "guerras cirúrgicas", realizações de pessoas muito letradas e "educadas".

Se argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos não convencem, mostremos razões econômicas para investir na primeira infância. O Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que um dólar investido nesta faixa etária economiza sete dólares em assistência social, atendimento a doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e em evasão escolar. Nada teremos de diferente do cenário atual se não tomarmos rumos econômicos mais humanitários conosco mesmos.

Organização não-governamental, apartidária e humanitária sem fins lucrativos, o Instituto Zero a Seis (www.zeroaseis.org) nasceu para colaborar, com fundamentação científica, na construção de uma geração que tenha a cultura de paz e não-violência como fundamento de seu estilo de vida. Vai reunir e disseminar conceitos e práticas para criar uma massa crítica de consciência suficiente para cuidar melhor da primeira infância. No universo de seu público-alvo estão jovens, adultos cuidadores de crianças, pais e mães, educadores, cientistas, profissionais do Direito e da Saúde - especialmente da área mental -, comunicadores, empresários, gestores públicos e privados, artistas e formadores de opinião, além de empresas e instituições.

O novo cenário exige o resgate de valores essenciais à vida em sociedade, tais como a ética, amor e respeito às diferenças. Com isso será possível a promoção da convivência societária e solidária fundamentada cientificamente na resiliência e na salutogênese.

A resiliência, interativa, refere-se à relativa resistência de um individuo às experiências de risco em seu ambiente na superação dos estresses e adversidades de maneira saudável. É utilizado para referir-se a pessoas de performances psicológicas boas a despeito de vivências negativas das quais esperaríamos seqüelas graves.

Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, a salutogênese designa as forças que geram saúde. É o oposto da patogênese, ou seja, as influências que causam a doença. Antonovsky recomenda potencializar forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar esta "força", através da ciência, pela chamada salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social.

Eis aqui os principais antídotos da violência que nos dispomos a aplicar.

João Augusto Figueiró é diretor do Conselho Científico do Instituto zeroAseis.

Fonte: Infância e Paz/Senado Federal

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